Aviso

“Não toque. Poesia fresca”.

Veio um djim e cuspiu em cima.
Eu retoquei.
Veio uma mulher e passou o dedo.
Eu retoquei.
Vieram os críticos…
Eu, rápido, retoquei.
Veio um Deus e riu de minha obra.
Eu chorei, e retoquei.
E vieram padeiros,
engenheiros,
açougueiros,
leprosos e tuberculosos,
escritores,
doutores,
e professores.
Todos pararam,
olharam, e
passaram o dedo.
Eu segui retocando,
retocando,
retocando!
Por isso — por mais nada —
minha poesia está toda manchada.

Meus Olhos

Os olhos que me vêem,
não são os olhos
como eu me vejo!
Os olhos que me vêem,
marcam minhas varizes,
minhas mãos trêmulas,
minhas rugas decaídas,
meus passos trôpegos…

Os olhos que me vêem,
são críticos ferozes,
acépticos e não suportam falhas
e crêem nas manhas da velhice.

Os olhos que me vêem
são insuportavelmente jovens,
são frescos e belos,
são violinos e violoncelos,
são frutas sazonadas,
aromáticas e perfumadas.

Os olhos que me vêem…
Os olhos como eu me vejo
são olhos de criança.
De um poeta em corda bamba,
de um garoto pulando de patins,
de um menino andando de bicicleta,
um jovenzinho em seu primeiro porre!

Os olhos como eu me vejo…
não me vêem de cabelos brancos,
tossindo em meus crônicos pigarros,
em cima de meus cigarros,
vomitando em berros meus acessos,
dançando meu último tango
em Brás de Pina!
— esta é minha sina! —

Os olhos meus
com que vejo meus eus
são de deslumbrante mocidade,
cheias de boa vontade e
vontade de viver.
São olhos de rapaz
capaz de uma boa trepada,
ainda cheio de gás,
longe, longe de morrer.

Os olhos com que me vejo
não são os olhos com que me vêem…

Grito

Que acumulem-se penas,
dores, gritos, fracassos, ruínas,
berros “fantasmagóricos”
inibições.
Lágrimas de cera, ranço,
limo,
e o que mais seja!
Que espirais de tédio
Invadam-me a alma
congelando todas as ilusões.
Que nuvens de pó
Amortalhem a luz do meu próprio eu.
Que famintas piranhas
devorem toda a minha laboriosa obra.
Que gafanhotos destruam
tudo aquilo que amei
— A P A I X O N A D A M E N T E .
Que os urubus se banqueteiem
no meu intento de liberdade estética.
— Ainda assim será o poeta
que gritará ao fim de todos os sofrimentos:
VIVA A VIDA!
O amor!
O sol!

Poema a guisa de resposta

Mais de uma vez já me perguntaram
porque a minha poesia
tem cor de mata queimada,
tem o odor dos pântanos,
e de música a máscara funérea de Bach.

Eu nunca me respondi!

Aliás me ocorre que nada havia a dizer.
Pois nunca há nada a dizer.
Não fossem as supostas perguntas veladas respostas,
e as respostas, perguntas que se atreveram beijar
soluções, irrespondíveis por serem perguntas às respostas
e respostas às perguntas? —
Ainda assim não fosse, alguém me diria que eu sou?
Quem sou eu, eu primeiro,
antes desse código que me deram ao nascer,
Desse nome usual e som pelo qual me chamam e atendo?
Quem sou eu dono de banco, rapaz de Cadilake,
jogador de futebol, moça de biquíni, padre,
comandante de navio, funcionário público,
artista de cinema, garçom de botequim?
Quem sou eu?
Que bem podia ser tudo isso e nada sou!
E que me compenetro
da minha condição de nada-tudo!
E que és tu?
Predisposto a me dizer que o mundo é assim,
a rir de minha loucura, a zombar de minha amargura,
Entretanto a gargalhar de mim!
E ainda que eu cantasse o amor?
Mas aonde o de meu e que me negaram?
E oh! Deus meu em que não creio
e era o único bem que eu tinha! —
Queriam que eu tecesse um bálsamo
e saltasse ao vento balões multicores?
Queriam!?
… Como se a isso eu fosse obrigado!
E então…
Porque em esfinge me oferecem esse Cavalo de Tróia?
Queriam que eu tecesse boas à virtude,
à moral, à vida?!
Esqueceram que a virtude é escassa,
A moral é vária,
A vida é carnaval!
E de sobra, — A RAZÃO —
É máscara, é tartufo, é plural!
Queriam sentir nas chagas pútridas
o sopro materno e acalentar as dores?
Queriam!?
Como se eu fôra fole!
Não comigo.
Não comigo, amigo.
Mas vossas santas feridas lançarei sal, pimenta, iodo,
pús e o que mais das minhas podres sobrar.
Não sou médico para pensá-las ou cicatrizá-las.

Para isso existe um Deus!
Dalton Porto – abril/59

Elegia

Lá onde o deixei…
… Lá onde o deixei…

Lá onde o deixei
Os pássaros cantam a alegria de viver!
O vento sussurra preces tristes,
e há em tudo
A calmaria pungente das cruzes brancas.
Lá onde o deixei…

Lá onde o deixei,
Um ponto qualquer na imensidão sepulcral
Há vida também,
Nas preces ditas…
Nos impressos lapidados…
Nas alegrias vividas,
Nas lágrimas corridas,
Nos prantos recalcados!
Nas próprias células mortas
A vida se perpetua! —
No espírito que se desprende
Nas vozes que vêm da rua,
Lá onde o deixei…

Lá onde o deixei,
Na avenida dos mortos,
Nas casas que dizem:
Aqui jaz fulano —
Os anjos brincam de roda,
Cantam e fazem serestas
E choram, às vezes, também.
Anjinhos iguais
Ficaram contentes,
Cantaram alegres
Modinhas de roda
Quando viram chegar.
“ Ciranda, cirandinha,
Vamos todos cirandar… “

Lá onde o deixei…

Lá onde o deixei,
Há árvores frondosas,
De verde esperança
das preces tristonhas que sobem aos céus.
Cantam as cigarras…
As hienas gargalham…
Tudo lá onde o deixei…

Nunca mais irei lá!
Nunca mais.
Ouvir o folhejar sussurrante,
O gorjeio dos pardais,
O vento cantante,
E um sol tão quente!
E um céu tão azul!
E uma calma tão profunda…
Nunca mais irei lá.

Nuca mais trilharei com os meus pés
Aquelas avenidas.
Nunca mais verei aquele profundo mar branco,
Imensurável mar silente —
Que ergue os braços em cruz,
E engoliu meu filho.

Nunca mais irei lá.
Nunca mais.

Lá onde o deixei…
… Lá onde o deixei…
Dalton Porto – 12 / 1955

Ave Maria

É hora da tristeza…
É hora do desânimo…
… Desalento…
É hora de tédio…
de melancolia…
de nostalgia…
Seis horas da tarde…
Ave Maria…
É hora de morrer!
Devagarzinho.
Assim como morre o sol…
… Olhos abertos
e perecer…
Só que eu não morro!
Eu sou forte!
Carrego um dínamo comigo.
E entro a noite
— Só!

Ai, que são seis horas da tarde.
O som da ave-maria me esmaga,
me aniquila,
me arrasa,
e meus problemas crescem gigantes;
e meu radar me mostra lodo,
e eu não encontro ninguém!
— M I R A G E M —
Ai, por favor, um padre,
ai, por favor, um padre,
que é hora de confissão;
ai, por favor, um padre,
— um amigo… Um irmão!

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